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Alegres Memórias de um Cadáver

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Sobre Alegres memórias de um cadáver


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Marisa Lajolo



     Romance que marca um episódio muito significativo em minha história de leitura é As alegres memórias de um cadáver, publicado em 1979, pelo paranaense Roberto Gomes, que de lá para cá continua escrevendo histórias sensacionais. Não conhecia o autor, ganhei o livro de um colega. Já na capa, a menção a memórias e a cadáver me parecia prometer um livro em contraponto machadiano: insinuava diálogo com Memórias póstumas e acenava com dose extra de expectativas: estas memórias seriam - ao contrário as outras - alegres!


     Será que cumpririam a promessa?


     Mergulhei na leitura. Era um feriado longo, numa praia em Santos, num dia de sol. O romance era curto, não larguei até que virei a última página. As expectativas foram mais do que satisfeitas .
A história passa-se numa universidade, o que é de grande originalidade na tradição brasileira: Alguns autores ingleses - capitaneados pelo imperdível David Lodge- tinham me iniciado no sofisticado humor da campus novel. E eu agora encontrava em Roberto Gomes um similar nacional, à altura do melhor artigo made in England, sob medida e embrulhado para presente.


     Numa tradição de poucos romances-de-escola, As alegres memórias de um cadáver estabelece um patamar alto para o gênero. Sua narrativa é ágil, seus diálogos são bem recortados, e são consistentes os múltiplos pontos de vista da narração. De quebra, o livro dialoga com uma das obras mais sofisticadas da literatura brasileira - Memórias póstumas de Brás Cubas. Adorei cada página do livro .

 
     Tudo combinava: instituições universitárias - como a que constituía o cenário do romance- são o espaço por excelência de leituras, releituras e desleituras contemporâneas do clássico Machado de Assis.


    Ri muito com a com a narração das reuniões colegiadas e com a história do cadáver que assombra uma faculdade. E sorri melancólica com a história da faculdade em pânico assombrada pelo ex-bibliotecário. A re-edição do livro em 2004 deu chance para uma nova leitura: o autor alterou coisinhas, uma aqui outra ali, mas tudo matéria de somenos. No geral a história permanece. Continua excelente.


     O que não permaneceu, parece, foi a universidade...


   Melhor dizendo: na distância dos vinte e cinco anos que tem, a história pode ser lida como narrando uma versão bem sugestiva dos caminhos desencontrados do ensino superior brasileiro. Em suas páginas, uma autópsia da universidade na qual nos (des)encontramos muitos dos que discutem romances e quejandas literatices.


    Roberto Gomes conduz o leitor por entre uma galeria de reitores, vice--reitores, professores, funcionários e alunos, todos rigorosamente inesquecíveis e verossímeis. São tipos mais do que pessoas, exceto, talvez, o cadáver, por mais incrível que pareça.


     O livro fixa um momento de que minha geração lembra-se bem, e de que os mais jovens devem ter ouvido falar. O tempo de ditadura militar. Confronto com a repressão, tempo de movimento estudantil forte e de grande coragem. Nos idos dos anos setenta do século XX, vilão era vilão e herói era herói. Uns usavam uniformes e outros eram cabeludos..


     Tudo, sei hoje, muito pouco dialético.


    Lido no calor da hora, o romance de Roberto Gomes podia parecer realista, não obstante a pitada de fantástico representada pelo defunto-leitor, o que já o tornava uma leitura diferente e inquietante. Relida agora, a história que põe em cena o entrevero movimento estudantil versus repressão ganha outro tempero. Ao virar a última página, o leitor de hoje fica olhando com um olhar oblíquo para as certezas monolíticas que outrora recortavam corações e mentes.


     Sacudo a cabeça e dou a volta por cima. Já íntimos do cadáver memorialista, temos ao lado o rigor implacável da história. Quem disse que ela está morta? Qualquer noite destas, levanta-se de sua banheira de formal e sai por aí. Quem viver verá!

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