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Os dias do demônio

​

Literatura que engrandece a realidade



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Wilson Martins


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Roberto Gomes e Tabajara Ruas aliam estilo,
criatividade e precisão em dois excelentes romances históricos
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     No romance histórico, a realidade fornece o assunto, a intriga e os personagens, ou seja, o que não é literário, cabendo ao romancista, por paradoxo, torná-los imaginários, acrescentando verossimilhança ao tecido da verdade. Voltamos, com isso, às clássicas distinções aristotélicas, segundo as quais o verdadeiro é o que realmente aconteceu, matéria da História, enquanto o verossímil é o que poderia ter acontecido, matéria da literatura.


     Tornar imaginária a realidade não é falsificá-la, mas, ao contrário, fazê-la mais verdadeira como ficção: no romance histórico, a homogeneidade artística obtém-se pela ficcionalização dos personagens e fatos reais mais o concomitante tratamento realista dos fictícios, requisito que chegou ao ponto ótimo nos livros de Roberto Gomes ("Os dias do demônio". Porto Alegre/ São Carlos: Mercado Aberto/ UFSCar, 1995) e Tabajara Ruas “Os varões assinalados". Segunda ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995).


     Neles, a simbiose é tão perfeita que .podemos lê-los simultaneamente como História e como literatura, pois ambos conservam os nomes e as datas, a localização e os episódios da vida real, acrescentando-lhes o ritmo e o sentido que esta última, sendo, por natureza, fragmentária e incoerente, só adquire, justamente, em retrospecto, isto é, na reconstrução imaginária. Tabajara Ruas retoma a obsessão dos gaúchos pela Revolução Farroupilha, trauma de complexa substância mental, constituída pelos mitos heróicos e suas frustrações, pela má consciência e orgulho reivindicativo, pela memória épica e incontáveis dramas humanos.


    De Alcides Maia e Simões Lopes Neto a Érico Veríssimo e Tabajara Ruas (para mencionar apenas os picos da cordilheira), essa é a matéria da gauchesca, invenção retrospectiva e saudosista de escritores urbanos, conforme já foi observado pelo antigaúcho que se chamava Jorge Luis Borges, signo distintivo do espírito rio-grandense e remorso inseparável de suas nostalgias nacionais - ou vice-versa.


     Moisés Vellinho, historiador e ensaísta que faz simetria, no campo das idéias, aos romancistas nos domínios da imaginação, tomou como tema central de sua obra o propósito de contestar, em oposição às verdades aceitas, que o espírito e a realidade social do Rio Grande do Sul respondessem e correspondessem a projetos separatistas. Antigetulista ferrenho, o motivo oculto de sua argumentação consistia em negar que Getúlio Vargas, caudilho de paletó-saco, fosse, por qualquer das suas costelas, homem representativo da sua região, com o que, aliás, contradizia o seu sistema de idéias (tudo isso deve ser enquadrado nas coordenadas da grande e irreparável clivagem que separa em duas as famílias políticas do Rio Grande do Sul, os chimangos e os maragatos).


     Aí está a trama invisível dos "Varões assinalados", título tanto mais significativo quanto propõe desde logo a "chave" de leitura: a Revolução Farroupilha e os seus homens e feitos, a sua gesta ao mesmo tempo trágica e heróica, formam a matéria que fascina Tabajara Ruas (também em segunda edição e pela mesma edi­tora, está circulando “Netto perde sua alma", painel lateral do quadro gigantesco, semelhante aos que os artistas clássicos e românticos pinta­ram sobre as grandes batalhas e os grandes generais).


    Batalhas e generais afrontaram-se e enfrentaram-se, por definição, na Revolução Farroupilha, não apenas republicanos contra monarquistas, mas também os republicanos entre si ao acaso das inevitáveis rivalidades pessoais, inclusive, ao que se diz, nas disputas amorosas.


    Sob esse aspecto, pode-se tomar o duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires como resumo ou miniatura psicológica de todo o processo, significativamente privilegiado por Simões Lopes Neto num dos seus contos paradigmáticos ("Duelo de farrapos") - tratado por Tabajara Ruas numa página destinada a tornar-se clássica no romance brasileiro.


   Desse quadro de heroísmo militar passamos, com o romance de Roberto Gomes, para o plano das misérias contemporâneas, no que poderíamos denominar, em terminologia marxista de botequim, as lutas camponesas no sudoeste do Paraná.


   Lutas camponesas que, no caso, nada tinham de ideológico, nem mesmo de político, no sentido imediato da palavra, originando-se nas torpes manipulações de grupos econômicos interessados em se apropriar de terras agrícolas já então legalmente adquiridas e ocupadas por autênticos agricultores (muitos, se não todos, originários, por coincidência, do Rio Grande do Sul, num dos movimentos migratórios mais interessantes da história paranaense).


    Roberto Gomes escreveu sobre isso um romance histórico modelar, que é, ao mesmo tempo, um documento de História, pois, num texto que é também uma denúncia irrecusável, políticos e organizações responsáveis comparecem, como ficou dito, com os seus próprios nomes, sem que isso interfira na trama e no tom narrativo enquanto ficção. Aqui se situa o tópico central da teoria romanesca, o chamado ponto de vista. Narradores oniscientes, Tabajara Ruas e Roberto Gomes escreveram, respectivamente, na ótica dos farrapos, afinal vencidos, e dos agricultores, afinal vitoriosos. E por esse lado que encaminham e orientam a cumplicidade do leitor, inclusive no desenho dos caracteres e nos pormenores da intriga.


    O romance histórico exige esse enfoque maniqueísta e participação emocional: quem os escreve espera que o leitor tome o partido dos três mosqueteiros ou o de Bento Gonçalves, este último não só contra o Barão de Caxias, mas também contra os seus rivais de comando - ou, no caso de Roberto Gomes, o dos agricultores inocentes contra o governo e a companhia que organizou ou deixou organizar para espoliá-los.


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