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Todas as casas

Arquitetura Fugaz


Antonio Manoel dos Santos Silva



    ​Ano passado, Roberto Gomes publicou Todas as Casas (Criar Edições, 2004, 158 p.). Pode-se ler este livro como romance narrado pelo protagonista. Aquele tipo de romance que simula uma biografia individual. Mas pode ser lido como crônica extensa, seriada como as novelas de espaço (conforme ensina Wolfgang Kayser), em que a personagem principal participa de eventos distintos  de acordo com a mudança do lugar da ação. Leva jeito de autobiografia, naquela linha que, vindo  de Santo Agostinho (Confissões), teve cultores ilustres na Literatura Brasileira: Joaquim Nabuco, Coelho Neto, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Paulo Setúbal, Ciro dos Anjos.


     Gente acostumada com literatura e  crítica literária, quando vai apreciar um texto melhor  escrito (como é o caso deste ),  quer logo identificar o gênero para estabelecer um padrão de julgamento. Então, quando fica complicada essa definição formal, corre para a ficha catalográfica e lá  encontra a salvação: “crônicas”, “contos”, “novela”, “romance”, “memórias”. Quando um desses rótulos está presente (e quase sempre está), o leitor acredita na denominação e logo se vê no direito de pespegar suas críticas depreciativas ou de elogiar as perfeições. Não se encontra rótulo algum em Todas as Casas. Como o autor também conhece as normas editoriais, a falha  catalográfica parece apontar para uma deliberada intenção: a de provocar dúvidas e discussões. Embora não discuta o gênero, fico cheio de dúvidas, mesmo porque, em obras anteriores, a identificação era clara: Alegres Memórias de um Cadáver  tinha o selo de romance, o formidável Os Dias do Demônio, também, assim como Antes que o Teto Desabe e  O Terceiro Tempo do Jogo. “Contos” apareciam fichando Sabrina de Trotoar e de Tacape e Exercício de Solidão. Conclusão: o autor não encontrou um gênero para que nele coubesse o seu livro. Concede, pois, ao leitor a liberdade de escolher o gênero ou de ter o trabalho de defini-lo.


     Não me dando a este trabalho, facilito-me  a tarefa:  trata-se de narrativa em primeira pessoa. Se, de um lado,  não conheço o autor e as vicissitudes de sua vida real, inclino-me por afirmar que o texto faz parte da família dos romances de formação, aqueles em  que o protagonista se caracteriza pela passividade diante dos acontecimentos mas, contrariamente, pela não aceitação das normas e convenções ditadas pela sociedade em que vive (não tem forças suficientes para modificar o mundo, mas resiste às imposições deste, e assim, por meio dessa autolimitação ou desse aprendizado, alcança a maturidade).   Se, de outro lado, conheço o autor, inclino-me a dizer que se trata de uma biografia transfigurada pela imaginação e pelo sentimento, uma simulação em que o autor se vê como um outro,  portanto se vê como personagem; ergo, se trata de um romance.


     O protagonista não tem nome próprio com que se identifique no relato. Também a mãe dele não tem nome, seqüestro que  pode causar estranheza num livro de memórias (já me esqueço de que se trata de romance). Têm nome próprio seu pai e seus tios, seus primos e seus amigos, seus professores e  suas namoradas, sua amante de juventude. O autor tem nome, mas o narrador-escritor não tem. Fica personagem pronominal,   um eu garantido pelo ato de escrever sua própria história demarcada pelas casas em que viveu e das quais rememora menos a arquitetura do que as imagens das pessoas que habitam ou vagam por esses espaços. Se o protagonista se identifica como eu, de que pessoa este pronome faz as vezes?  Resposta: a pessoa de um escritor. Qual o nome dele? Roberto Gomes?  Ou apenas um eu que, pela memória e também pela recordação devaneante,  vaga de casa em casa, em busca da casa real sonhada? Neste ponto (e em muitos momentos da leitura do livro) me vem à mente o relato-ensaio de Borges, Borges y yo  (El Hacedor), quando o escritor argentino discorre sobre Borges como sendo o outro, concluindo a vertigem de seu discurso interior com a seguinte afirmação: “Não sei qual dos dois escreve esta página” (No sé cuál de los dos escribe esta página).  Indagação semelhante,  Roberto Gomes deve ter feito enquanto escrevia Todas as Casas, pois no último parágrafo do primeiro capítulo deixa escrito: “Onde estaria, então, a infância, dispersa desta forma por tantos lugares? Pensada assim, nem sei se terá sido uma só infância. Eu mesmo terei sido um só nesta multidão de lugares e gentes? Como me achar entre tantos destroços?”.


     O percurso narrativo do livro está traçado pelas casas. Na realidade, parece haver três percursos:  primeiro, o  dos acontecimentos rememorados linearmente segundo as mudanças de espaço; o segundo, o do acontecimento narrativo (a narração, a lembrança enquanto discurso presente) que se sobrepõe, quando não interfere, nos fatos rememorados; e o terceiro, em profundidade simbólica, cujos pistas são dadas pelos títulos dos capítulos, especialmente do primeiro e do último. De As Casas para A Casa, insinua-se a existência de uma trajetória, por assim dizer barroca, da diversidade para a unidade, da disseminação para a recolha, das singularidades para a totalidade. Este roteiro pode provocar leituras esotéricas, por exemplo, a de que os 14 capítulos correspondem aos passos da paixão, a via crucis de formação espiritual do protagonista. Tal leitura não resiste à análise mais objetiva, mas é atraente. Tão mais atraente quanto lá, no livro e em todas as casas, existe pulsante a mãe cujo nome foi abolido e que teria tudo para ser o herói demoníaco ou problemático do texto. Mas se esta personagem fosse a do ficcionista e não a do memorialista, a ambigüidade do gênero se desfaria e teríamos, sem dúvida, um romance de tensão interiorizada ou do “idealismo abstrato”.


     A última suposição se torna impertinente, uma vez que a narrativa se desenvolve como uma exploração do tempo e no tempo. O mesmo tempo que permitiu a Santo Agostinho a primeiras grandes reflexões sobre a fugacidade humana e ao narrador-escritor a constatação melancólica de que “As casas acabam muito antes de suas paredes ruírem, das goteiras invadirem os telhados, da umidade apodrecer suas paredes, dos rancores destruírem seus alicerces. Acabam antes mesmo de sairmos delas, quando ainda alimentamos alguma esperança de que possam ser eternas.” Desta arquitetura fugaz escapa apenas a lembrança da oficina de um jornal  cuja descrição (na simbólica terceira casa) constitui uma das páginas mais bonitas do livro em  virtude de sua exatidão geométrica, seu  ritmo, sua sintaxe disciplinada. Essa descrição nos faz enveredar pelos outros espaços e para o levantamento de uma fenomenologia da casa. Penetrar nesse universo e explorar os seus espaços interiores e exteriores seria, porém, muita impertinência, pois tiraria do possível leitor um dos prazeres maiores oferecidos pelo texto.




(*) Antonio Manoel dos Santos Silva (São Paulo, 30/04/2006)
Publicado originalmente no site: Vitrine Literária – www.vitrineliterária.com.br


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