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O conhecimento de Anatol Kraft

O QUARTETO DE ANATOL



Antonio Manoel dos Santos Silva





     O conhecimento de Anatol Kraft (Curitiba: Criar Edições/Insight Editora, 2011, 113 p.), último romance de Roberto Gomes, traz todos os indícios de que anuncia um outro romance, talvez não o próximo, mas um romance daqueles em que o autor se demora mais do que se costuma demorar em sua elaboração, a fim de, exaustivamente, explorar os temas que o perseguem e o movem há bastante tempo. No fim deste comentário, explico por que tenho esta impressão.


     São quatro personagens: um idoso, Anatol, antiquário, Henrique, um jovem bancário, jornalista acidental; Marina, moça de pouco mais de vinte anos,e Tereza, amiga e companheira de Henrique. O romance, inclui outro romance, escrito pelo protagonista Anatol, a cujo resumo temos acesso na leitura do capítulo intermediário desta narrativa que lemos. Nesse outro romance, como em espelho (ou abismo, conforme os estudiosos de André Gide no ensinam), temos outro quarteto formado por Menarco e suas três amantes: Netinha, Adelaide e Marlene. Se formos no embalo da última frase desse capítulo intermediário (Esse mergulho no avesso de tudo é o que os leitores poderão acompanhar na entrevista a seguir), poderemos afirmar que, como todo lado do avesso de um tecido, essas personagens do romance encaixado (Do outro lado do mundo), mostram o escondido pelo lado direito (o romance encaixante O conhecimento de Anatol Rosenfeld). Se assim for, Menarco é o avesso que nos mostra Anatol; Netinha, o avesso que nos mostra Marina; Adelaide, o avesso que nos mostra Tereza e Marlene, o avesso que nos mostra Henrique. Para confirmar o delírio dessa imaginação crítica, seria necessário um trabalho de micro-estilística que – é obvio – não tenho condições de desenvolver neste pequeno espaço. Trabalho que contrariaria, frontalmente, o que Anatol pensa dos estudos literários.


    Pois Anatol contesta o valor da crítica literária e menospreza, decididamente, os professores de literatura e os pesquisadores que se preocupam com minúcias do texto ou particularidades dos próprios autores desses textos (“Tudo bobagem. Estudam a vírgula em Guimarães Rosa, as formas das janelas em Machado de Assis, as rugas em Clarice”). Tem conceitos sobre literatura muito contraditórios, tão contraditórios que chegam a provocar espanto e riso. Evidentemente se acatássemos suas opiniões, não estaríamos fazendo comentários impertinentes sobre este livro de Roberto Gomes. Contestador de tudo, até de si mesmo, Anatol combina em si as características do libertino simpático, do fanfarrão ora simplório ora agudo, do intelectual descontente com a mediocridade à sua volta e, ao mesmo tempo, ressentido com o meio literário, do humanista que abomina a mercantilização da arte mas age, na prática, como um comerciante atilado e objetivo. Enfim, um personagem que se pode classificar, conforme se lê em teorias narrativas, como um ser redondo ou multifacético.


     Essas características se revelam no decorrer da narrativa graças a Henrique, um jovem bancário e jornalista amador. Henrique faz contraponto com Anatol não só porque é jovem, mas porque procura resgatar o único livro que o vendedor de antiguidades havia escrito muitos anos atrás, demonstrando com isso que defende valores que Anatol considera perdidos, inclusive o valor literário “autêntico” da obra que o velho rejeita. Reforçam esse contraponto a trajetória coerente que este jovem percorre a todo custo, no sentido de vencer a resistência do outro, seu estar em formação, sua tolerância diante das variações temperamentais do amigo, tolerância que parece refletir no modo como se adapta a diferentes atrativos eróticos ou amorosos. As janelas de Anatol se abrem para a nesga de azul solar que cobre a cidade e as de Henrique, para o cinza chuvoso que tisna a praia de uma ilha.


     O narrador de fora desenvolve sua narrativa acompanhando a esse personagem. Desde o encontro inesperado com o antiquário até o fim, esse desenvolvimento progride por contrapontos e alternâncias. Assim, o tema dominante (a frase melódica) se faz em função de Anatol, tema que aos poucos vai cedendo para o tema de Marina, contrastando com o primeiro, que volta a dominar soberano no capítulo sétimo, o intermediário. A partir deste a polifonia sobrepõe os temas de Marina-Henrique, Henrique- Anatol, Marina-Anatol, com inserções esporádicas do tema erótico-amoroso que envolve Henrique e Tereza. Como nas obras contrapontísticas, essas quatro linhas temáticas (Anatol, o velho antiquário, Henrique, o jovem jornalista, Marina, a jovem amante, Tereza, a mulher independente), se unem no fim. Evidentemente que essa composição constitui uma forma abstrata de se perceber a estrutura de O conhecimento de Anatol Kraft. Estrutura que talvez ficasse mais exatas se apontássemos o contraponto entre Marina e Tereza: aquela parece independente no amor mas se revela submissa e dependente, sem traumas porém; esta preserva sua liberdade de opção sexual.


     Tenho plena convicção que os leitores deste romance sentirão o ritmo que anima o texto de Roberto Gomes graças não só ao andamento dado à ação dessas quatro figuras humanas e à sua complexidade, mas também graças à linguagem que as desenha de modo que percebamos as características distintivas de cada uma. O autor não se enrola nas palavras, nem faz da sintaxe um instrumento para formar novelos confusos e incompreensíveis. Pelo contrario, sua frase nos facilita a compreensão das histórias de cada personagem e do modo como suas vidas ora se juntam, ora se separam, aqui coincidem e logo se afastam. Um romance verdadeiro, ainda que curto na extensão.


    Sugeri até agora uma leitura que se detivesse na polifonia do enredo de modo a se perceber um quarteto contrapontístico, embora não barroco. Mas é possível ver o texto como um todo do qual se destaca um capítulo, exatamente o capítulo do meio.o sétimo, que ocupa o centro, inclusive material, do livro. Contém o resumo, incluindo um trecho de prefácio, do romance escrito por Anatol Kraft, Do outro lado do mundo. Esta segunda leitura aproxima o texto de outros que, movidos pela literatura mística ou por uma consciência operante da construção, situa o trecho central como o lugar privilegiado para problematizar a criação específica ou pôr em relevo um segundo sentido que, de outra forma, passaria desapercebido. Dentre esses outros textos, lembro Macunaíma, de Mário de Andrade, cujo centro é ocupado pela “Carta pras Icamiabas”; lembro Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, cujo centro é ocupado por “O Espelho”; lembro, deste mesmo autor, Corpo de Baile, em que o centro está constituído por “Cara de Bronze”, no centro do qual um trecho mostra a reflexão sobre o ato da leitura e o ato criador; lembro, ainda do mesmo Rosa, o centro material de Grande Sertão:Veredas, lugar do pacto diabólico, seus preparativos e suas consequências imediatas.


     O sétimo capítulo de O conhecimento de Anatol Kraft demonstra como é importante, do ponto de vista estético, o estudo das minúcias estilísticas, ou seja, o estudo das … vírgulas em Guimarães Rosa. Pois o sétimo capítulo começa com as aspas de abertura, as quais indicam que vamos ler um artigo sobre Anatol Kraft e seu romance pouco lido. Saberemos depois que se trata de um esboço de artigo. Pois bem, o que se espera é que a essa abertura com aspas corresponda um fechamento com aspas. Fechamento, que não vem. O último parágrafo deste artigo, escrito por Henrique, está impresso, no romance de Roberto Gomes, da seguinte forma, que destaco em itálico.


     Portanto, do outro lado do mundo, do corpo, das idéias, das fantasias, das citações, dos livros lidos, dos amores, das paixões, do sexo. Esse mergulho no avesso de tudo é o que os leitores poderão acompanhar na entrevista a seguir.


    Acontece que a entrevista não surge a seguir. A seguir temos o capítulo oitavo, onde se narra a “traição” voluntária consentida de Marina, que cede ao impulso da experiência sexual com Henrique, depois de um diálogo que começa com a discussão sobre o esboço de artigo do jovem jornalista amador. Essa simples falta de aspas causa no leitor o famoso “estranhamento” ou, no mínimo, uma pequena dúvida: quem está se dirigindo aos leitores? É o Henrique que escreve o esboço ou é o narrador do romance de Roberto Gomes? Quem são os leitores, os virtuais do romance resumido ou os virtuais de O conhecimento de Anatol Kraft? Há aqui uma fricção entre realidades ficcionais e até entre universo ficcional e universo real, fenômeno que não se pode estranhar na literatura moderna e, na brasileira, desde Machado de Assis, passando por Mário de Andrade, Oswald de Andrade e chegando aos romances-reportagens, aos romances ditos históricos e a muitas biografias literárias (fato aliás lembrado por Anatol).


    Evidentemente que essas dúvidas se resolvem se colocamos a falta de aspas conclusivas na conta de uma falha tipográfica, coisa que todo autor de romance abomina. Essa lacuna mínima, mas significativa, se assim resolvida pelo leitor arguto ou chato, deixa outra: a entrevista que se anuncia não está impressa, ou melhor, só será conhecida por quem ler a segunda edição do romance de Anatol Kraft, Do outro lado do mundo. Que romance seria este? O resumido pelo artigo de Henrique? Sugiro uma resposta.


    No último capítulo de O conhecimento de Anatol Kraft, ao narrar a última caminhada de Anatol e Henrique em sua volta a pé para casa, este último pergunta àquele se por acaso ele não teria “algum livro inédito, talvez escondido num canto secreto do antiquário.” Anatol lhe responde:


    — Veja jornaleiro. Se eu disser que sim, amanhã você desmontará as prateleiras da minha loja em busca do original prometido. Se eu disser que não, duvidará de mim e fará a mesma coisa inútil. Portanto, não digo nada, exceto que só cometi uma vez a imprudência de escrever um livro. O que me absolve de muitos pecados.


    Como leitor de O conhecimento de Anatol Kraft, mas também de outros romances de Roberto Gomes, que não é, graças a Deus!, o Anatol, sou de opinião que ainda irei ler o grande romance Do outro lado do mundo, pois já está esboçado por Roberto Gomes, quem sabe escrito em sua primeira versão, mas escondido e passando por aquele rigorosa construção que possibilite a mim, pobre leitor e professor, e a todos os reais leitores, um dia, mesmo que seja daqui a algum tempo, termos acesso ao avesso e, portanto, à profundidade estética e à substância de verdade que autentica a nossa vida.


Antonio Manoel dos Santos Silva (janeiro de 2012)

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