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Opiniões da Crítica



Abaixo, publicamos os seguintes textos para sua leitura:

 

Arquitetura Fugaz, Antonio Manoel dos Santos Silva.

As crônicas de Roberto Gomes, Paulo Venturelli.

Sobre Alegres memórias de um cadáver, Marisa Lajolo.

Literatura que engrandece a realidade, Wilson Martins.

Um caso de bovarismo, Wilson Martins.

Arquitetura Fugaz

Antonio Manoel dos Santos Silva

Ano passado, Roberto Gomes publicou Todas as Casas (Criar Edições, 2004, 158 p.). Pode-se ler este livro como romance narrado pelo protagonista. Aquele tipo de romance que simula uma biografia individual. Mas pode ser lido como crônica extensa, seriada como as novelas de espaço (conforme ensina Wolfgang Kayser), em que a personagem principal participa de eventos distintos  de acordo com a mudança do lugar da ação. Leva jeito de autobiografia, naquela linha que, vindo  de Santo Agostinho (Confissões), teve cultores ilustres na Literatura Brasileira: Joaquim Nabuco, Coelho Neto, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Paulo Setúbal, Ciro dos Anjos.

Gente acostumada com literatura e  crítica literária, quando vai apreciar um texto melhor  escrito (como é o caso deste ),  quer logo identificar o gênero para estabelecer um padrão de julgamento. Então, quando fica complicada essa definição formal, corre para a ficha catalográfica e lá  encontra a salvação: “crônicas”, “contos”, “novela”, “romance”, “memórias”. Quando um desses rótulos está presente (e quase sempre está), o leitor acredita na denominação e logo se vê no direito de pespegar suas críticas depreciativas ou de elogiar as perfeições. Não se encontra rótulo algum em Todas as Casas. Como o autor também conhece as normas editoriais, a falha  catalográfica parece apontar para uma deliberada intenção: a de provocar dúvidas e discussões. Embora não discuta o gênero, fico cheio de dúvidas, mesmo porque, em obras anteriores, a identificação era clara: Alegres Memórias de um Cadáver  tinha o selo de romance, o formidável Os Dias do Demônio, também, assim como Antes que o Teto Desabe e  O Terceiro Tempo do Jogo. “Contos” apareciam fichando Sabrina de Trotoar e de Tacape e Exercício de Solidão. Conclusão: o autor não encontrou um gênero para que nele coubesse o seu livro. Concede, pois, ao leitor a liberdade de escolher o gênero ou de ter o trabalho de defini-lo.

Não me dando a este trabalho, facilito-me  a tarefa:  trata-se de narrativa em primeira pessoa. Se, de um lado,  não conheço o autor e as vicissitudes de sua vida real, inclino-me por afirmar que o texto faz parte da família dos romances de formação, aqueles em  que o protagonista se caracteriza pela passividade diante dos acontecimentos mas, contrariamente, pela não aceitação das normas e convenções ditadas pela sociedade em que vive (não tem forças suficientes para modificar o mundo, mas resiste às imposições deste, e assim, por meio dessa autolimitação ou desse aprendizado, alcança a maturidade).   Se, de outro lado, conheço o autor, inclino-me a dizer que se trata de uma biografia transfigurada pela imaginação e pelo sentimento, uma simulação em que o autor se vê como um outro,  portanto se vê como personagem; ergo, se trata de um romance.

O protagonista não tem nome próprio com que se identifique no relato. Também a mãe dele não tem nome, seqüestro que  pode causar estranheza num livro de memórias (já me esqueço de que se trata de romance). Têm nome próprio seu pai e seus tios, seus primos e seus amigos, seus professores e  suas namoradas, sua amante de juventude. O autor tem nome, mas o narrador-escritor não tem. Fica personagem pronominal,   um eu garantido pelo ato de escrever sua própria história demarcada pelas casas em que viveu e das quais rememora menos a arquitetura do que as imagens das pessoas que habitam ou vagam por esses espaços. Se o protagonista se identifica como eu, de que pessoa este pronome faz as vezes?  Resposta: a pessoa de um escritor. Qual o nome dele? Roberto Gomes?  Ou apenas um eu que, pela memória e também pela recordação devaneante,  vaga de casa em casa, em busca da casa real sonhada? Neste ponto (e em muitos momentos da leitura do livro) me vem à mente o relato-ensaio de Borges, Borges y yo  (El Hacedor), quando o escritor argentino discorre sobre Borges como sendo o outro, concluindo a vertigem de seu discurso interior com a seguinte afirmação: “Não sei qual dos dois escreve esta página” (No sé cuál de los dos escribe esta página).  Indagação semelhante,  Roberto Gomes deve ter feito enquanto escrevia Todas as Casas, pois no último parágrafo do primeiro capítulo deixa escrito: “Onde estaria, então, a infância, dispersa desta forma por tantos lugares? Pensada assim, nem sei se terá sido uma só infância. Eu mesmo terei sido um só nesta multidão de lugares e gentes? Como me achar entre tantos destroços?”.

O percurso narrativo do livro está traçado pelas casas. Na realidade, parece haver três percursos:  primeiro, o  dos acontecimentos rememorados linearmente segundo as mudanças de espaço; o segundo, o do acontecimento narrativo (a narração, a lembrança enquanto discurso presente) que se sobrepõe, quando não interfere, nos fatos rememorados; e o terceiro, em profundidade simbólica, cujos pistas são dadas pelos títulos dos capítulos, especialmente do primeiro e do último. De As Casas para A Casa, insinua-se a existência de uma trajetória, por assim dizer barroca, da diversidade para a unidade, da disseminação para a recolha, das singularidades para a totalidade. Este roteiro pode provocar leituras esotéricas, por exemplo, a de que os 14 capítulos correspondem aos passos da paixão, a via crucis de formação espiritual do protagonista. Tal leitura não resiste à análise mais objetiva, mas é atraente. Tão mais atraente quanto lá, no livro e em todas as casas, existe pulsante a mãe cujo nome foi abolido e que teria tudo para ser o herói demoníaco ou problemático do texto. Mas se esta personagem fosse a do ficcionista e não a do memorialista, a ambigüidade do gênero se desfaria e teríamos, sem dúvida, um romance de tensão interiorizada ou do “idealismo abstrato”.

A última suposição se torna impertinente, uma vez que a narrativa se desenvolve como uma exploração do tempo e no tempo. O mesmo tempo que permitiu a Santo Agostinho a primeiras grandes reflexões sobre a fugacidade humana e ao narrador-escritor a constatação melancólica de que “As casas acabam muito antes de suas paredes ruírem, das goteiras invadirem os telhados, da umidade apodrecer suas paredes, dos rancores destruírem seus alicerces. Acabam antes mesmo de sairmos delas, quando ainda alimentamos alguma esperança de que possam ser eternas.” Desta arquitetura fugaz escapa apenas a lembrança da oficina de um jornal  cuja descrição (na simbólica terceira casa) constitui uma das páginas mais bonitas do livro em  virtude de sua exatidão geométrica, seu  ritmo, sua sintaxe disciplinada. Essa descrição nos faz enveredar pelos outros espaços e para o levantamento de uma fenomenologia da casa. Penetrar nesse universo e explorar os seus espaços interiores e exteriores seria, porém, muita impertinência, pois tiraria do possível leitor um dos prazeres maiores oferecidos pelo texto.

(*) Antonio Manoel dos Santos Silva (São Paulo, 30/04/2006)
Publicado no site: Vitrine Literária – www.vitrineliterária.com.br







As crônicas de Roberto Gomes



Paulo Venturelli



A cada quinze dias, Roberto Gomes vem publicando suas crônicas no Caderno G, da Gazeta do Povo. Nelas, o autor mostra-se capaz de abordar problemas graves, sejam da área das relações humanas, sejam da criação artística (reflexões sobre o próprio trabalho de escrever) e da política, no sentido amplo. O tom, entretanto, foge da pretensa seriedade, porque o escritor opta por pinceladas rápidas – próprias do gênero que pratica – que não perdem de mira o discurso profundo da perspectiva com que encara e trata seus temas.
Sua marca é o humor corrosivo e sutil, de cunho machadiano. Roberto Gomes ressalta ainda, com esta moldura, os absurdos de nosso cotidiano, nossas idiossincrasias, nossos desacertos com o que está ao derredor ou cutucando os subterrâneos em que buscamos restos de ar. E, ao fazer isso, investe seus textos de leveza, a isca para nos convidar ao mergulho em seu pensamento. E, mergulhados aí, nos surpreendemos: o que parecia simples tirada de humor, efeito jocoso de frases bem construídas para ironizar, nos coloca no centro fervilhante de seu pensamento astuto, crítico, ágil e atento às passarelas do mundo. Sem fazer carranca, Roberto Gomes aponta o dedo em riste para as mazelas sociais e de cada indivíduo e, em lugar do acento moralista, entrega-nos a sátira, o deboche, o sarcasmo que são, no final de contas, o melhor caminho para revelar o quanto de ridículo acumulamos em nosso cotidiano. Ao escolher esta via, ele está realizando aquilo que Bakhtin tão bem localizou em Rabelais: o humor aproxima o homem das coisas do mundo, tira o halo das falsas seriedades, destrói hierarquias imponentes (e de pés de barro), para deixar escancarado o quanto tudo isso é oco, mero efeito visual, cenário de isopor que não resiste a uma investida mais contundente. A linguagem de Gomes, em decorrência, reinvestindo na crônica, recupera sua melhor tradição: o olho atento ao comezinho ou ao solene em sua real dimensão. E ao encontrar o tamanho efetivo de cada fato, de cada ser humano, de cada gesto, é que o autor consegue aquele humor refinado, para o qual os filosofemas são suportes precisos de desvendamento: fios da meada que cabe ao leitor puxar para perceber até onde cada trançado da crônica vai nos conduzir.
Por trás da arquitetura simples e comedida dos textos dominicais, há uma sólida bagagem filosófica que não nega a formação do escritor. Tal bagagem é ladeada por aquilo que até há pouco tempo chamávamos de “formação humanística” e que, nesta época pragmática, belicista, contraditória, vem sendo cada vez mais esquecida. Em seu lugar, assume o consumismo como modelo de vida a tiranizar as pessoas ou ridicularias como o “politicamente correto”, outro ready- made produzido na terra dos cowboys, estertorando estes para encontrar uma guerra que justifique a máquina mortífera que os colocou no poder. Tais embrulhos chegam até nós como abscessos. Gomes, com suas agulhadas, abre a crosta, fotografando a composição ideológica destas distorções, verdadeiros derivativos para não nos deixar ver o que realmente importa. Entretanto, ele evita o catequético, a impostação utilitarista, dando um riso de mofa, do que é exemplo a crônica sobre a arte de fazer bonecos. Nela, vêm à tona a ânsia pelo sucesso fácil e imediato, as máscaras em lugar da convicção, o trejeito substituindo o genuíno, o ventríloquo em lugar da pessoa de postura definida. Cada fotrograma desses denuncia sem alarde. O autor não grita, não esbraveja, não sobe no palanque. Vem de mansinho, quase engatinhando, até nosso ouvido e deixa cair ali dentro a gota gelada de fel. Temos de acordar, sacudir a letargia e, juntando as peças do quebra-cabeça verbal e conceitual, montar uma outra paisagem para o que enxergamos pela janela. Paisagem esta que nada tem com o que estamos condicionados a encontrar, nem com o que os meios de comunicação martelam sem parar sobre nossas cabeças. Com um detalhe: Roberto Gomes está usando um meio de comunicação popular (a Gazeta do Povo) para, nas entrelinhas, cutucar esses órgãos. Daí que seu trabalho, dialeticamente, oferece também um sentido metalingüístico para se repensar o jornal e a função do articulista/cronista nestas páginas de domingo.
Assim, suas crônicas têm um viés de resistência. Comprovam que pensar, ter conteúdo e visão não saíram de moda. Pelo contrário, são os únicos trilhos para não nos tornarmos aqueles bonecos sem vísceras da citada crônica.
Às vezes, há um toque de desespero que passa pelo filtro de um comportamento um pouco cético (o riso de mofa) e tal recurso evita o sentimentalismo rasteiro, tão comum na mídia que valoriza a emoção, confundida com arroubos lacrimejantes. É só prestar atenção em certas reportagens: notemos como os jornalistas (os perguntadores, que já foram tema de crônica mais antiga deste autor) se esforçam para fazer o focalizado chorar, como se a lágrima fosse o tosão de outro que todo repórter luta para conquistar. Quem sabe, por ser nossa sociedade tão destrambelhada, tão seca e impessoal, quando a tecnologia do aperta-botão mais e mais nos separa uns dos outros, as lágrimas que tentam fazer brotar sejam um modo de regar o chão e deixar nascer a plantinha mirrada da esperança fuleira. Roberto Gomes sacode a cabeça, encolhe os ombros, olha para cima como se nem estivesse ali, solta o seu assobio de aço cortante e nos desperta uma vez mais da empatia burra com esse tipo de construção midiática caça-ibope.
Atento aos desmandos do que também compreendemos um dia como “valores humanos”, o cronista não levanta bandeiras altissonantes. Ele se porta como um observador da vida e da sociedade, alertando, apontando para outras possibilidades de ser e de existir. Afinal, acredito que esta é a função da arte, se arte tiver alguma função neste nosso mundo-quintal-fazendola-capacho em que as “verdinhas” são o primeiro e o último lance para tudo. Enquanto um bom chargista – lembremos de Paulo Caruso – com três ou quatro traços monta e desmonta a febre de glória, os desmandos da política, a sede de poder, a fabricação de ícones inúteis, a indústria do prêt-à-porter, Gomes, com poucas palavras, no seu estilo sóbrio, às vezes quase telegráfico, realiza verdadeiros tratados de sociologia política ou psicologia social sobre o Brasil. No interior do cronista está o homem dos romances e dos contos (vários premiados), em suma, o homem que pensa, que não nega a crise, trabalha com ela e sobre ela, o artista preocupado com o destino deste planeta vagando meio sem rumo no infinito. Sem rumo? Outra vez olho visionário, outra vez artesão do pensamento que não se acovarda, Roberto Gomes lança a dúvida. Lançando a dúvida, nos inquieta; nos inquietando, fende a superfície que pretendemos una e harmoniosa. Damos uma espiada no que vemos. Não é nada bom o espólio. Desespero? Nada disso. Roberto Gomes atualiza o que Érico Veríssimo escreveu em suas memórias: o papel do artista é iluminar os males sociais, não oferecer soluções para eles. Os “homens da política” estão aí para isso (e, por sinal, ganhando muito bem), uma vez que detêm meios e poder ao seu alcance.
Por este enquadramento, na manhã de domingo, quando você ler a crônica de Gomes, pode ter certeza: o sofá vai espinhar seus fundilhos. O formigamento vai perturbar a pachorra domingueira. Você vai se coçar todo, incomodado com o pó que o escritor lhe lançou na direção do côncavo sonolento da alma refestelada de inércia. É para isso mesmo que existem os escritores dignos deste nome. Literatura e arte recusam o papel de canção de ninar. Roberto Gomes sabe muito bem disto. Veja, leia, e mantenha a passividade, se for capaz. 
A tradição da crônica brasileira tem muitos nomes de destaque, como Machado de Assis, João do Rio, Cecília Meireles, Rubem Braga, Fernando Sabino. A galeria agora se distende com mais este nome: Roberto Gomes, capaz de com um detalhe insignificante fazer pequena jóia de reflexão, ao mesmo tempo em que diverte.
Bartolomeu Campos Queirós, um escritor que prezo muito, disse certa vez;”ler não é um exercício fácil. Ler machuca muito, descontrola muito, tira muito a gente do prumo.” É assim que deve ser, no meu entendimento. Leitura não pode ser confundida com consumo anódino. As crônicas de Roberto Gomes cumprem esta tarefa à risca. O descontrole que geram, o prumo que quebram são estocadas nesta sociedade que se diz neoliberal e de neo e liberal não tem nada. Razão por que, nas entrelinhas de seus escritos, há um pigmento de utopia: refazer ao menos parte do mundo, reconsiderá-lo por outro ângulo, mostrar que o que é assim poderia ser de outro modo. O mundo em movimento convulso, em geral tocado por mãos oportunistas, tem nas constatações de Gomes um dique que diz: calma, lá, meu povo, isso não é a verdade intocável. Há outras facetas neste jogo. E, véu a véu, ele descortina o vale que, necessariamente, não precisa ser de lágrimas. Podemos dançar na corda-bamba. Cada crônica deste autor é música nova para que encontremos outro ritmo e a passagem possa ser feita com menos arranhões, mais sentido de humanidade, mais alegria simples de estar aqui, quando estar aqui implica a relação e o respeito com o outro, este bicho diferente e complicado e, também, revivificador do cotidiano.





Sobre Alegres memórias de um cadáver

Marisa Lajolo



Romance que marca um episódio muito significativo em minha história de leitura é As alegres memórias de um cadáver, publicado em 1979, pelo paranaense Roberto Gomes, que de lá para cá continua escrevendo histórias sensacionais. Não conhecia o autor, ganhei o livro de um colega. Já na capa, a menção a memórias e a cadáver me parecia prometer um livro em contraponto machadiano: insinuava diálogo com Memórias póstumas e acenava com dose extra de expectativas: estas memórias seriam - ao contrário as outras - alegres!

Será que cumpririam a promessa?
Mergulhei na leitura. Era um feriado longo, numa praia em Santos, num dia de sol. O romance era curto, não larguei até que virei a última página. As expectativas foram mais do que satisfeitas .
A história passa-se numa universidade, o que é de grande originalidade na tradição brasileira: Alguns autores ingleses - capitaneados pelo imperdível David Lodge- tinham me iniciado no sofisticado humor da campus novel. E eu agora encontrava em Roberto Gomes um similar nacional, à altura do melhor artigo made in England, sob medida e embrulhado para presente.
Numa tradição de poucos romances-de-escola, As alegres memórias de um cadáver estabelece um patamar alto para o gênero. Sua narrativa é ágil, seus diálogos são bem recortados, e são consistentes os múltiplos pontos de vista da narração. De quebra, o livro dialoga com uma das obras mais sofisticadas da literatura brasileira - Memórias póstumas de Brás Cubas. Adorei cada página do livro .
Tudo combinava: instituições universitárias - como a que constituía o cenário do romance- são o espaço por excelência de leituras, releituras e desleituras contemporâneas do clássico Machado de Assis.
Ri muito com a com a narração das reuniões colegiadas e com a história do cadáver que assombra uma faculdade. E sorri melancólica com a história da faculdade em pânico assombrada pelo ex-bibliotecário. A re-edição do livro em 2004 deu chance para uma nova leitura: o autor alterou coisinhas, uma aqui outra ali, mas tudo matéria de somenos. No geral a história permanece. Continua excelente.
O que não permaneceu, parece, foi a universidade...
Melhor dizendo: na distância dos vinte e cinco anos que tem, a história pode ser lida como narrando uma versão bem sugestiva dos caminhos desencontrados do ensino superior brasileiro. Em suas páginas, uma autópsia da universidade na qual nos (des)encontramos muitos dos que discutem romances e quejandas literatices.
Roberto Gomes conduz o leitor por entre uma galeria de reitores, vice--reitores, professores, funcionários e alunos, todos rigorosamente inesquecíveis e verossímeis. São tipos mais do que pessoas, exceto, talvez, o cadáver, por mais incrível que pareça.
O livro fixa um momento de que minha geração lembra-se bem, e de que os mais jovens devem ter ouvido falar. O tempo de ditadura militar. Confronto com a repressão, tempo de movimento estudantil forte e de grande coragem. Nos idos dos anos setenta do século XX, vilão era vilão e herói era herói. Uns usavam uniformes e outros eram cabeludos..
Tudo, sei hoje, muito pouco dialético.
Lido no calor da hora, o romance de Roberto Gomes podia parecer realista, não obstante a pitada de fantástico representada pelo defunto-leitor, o que já o tornava uma leitura diferente e inquietante. Relida agora, a história que põe em cena o entrevero movimento estudantil versus repressão ganha outro tempero. Ao virar a última página, o leitor de hoje fica olhando com um olhar oblíquo para as certezas monolíticas que outrora recortavam corações e mentes.
Sacudo a cabeça e dou a volta por cima. Já íntimos do cadáver memorialista, temos ao lado o rigor implacável da história. Quem disse que ela está morta? Qualquer noite destas, levanta-se de sua banheira de formal e sai por aí. Quem viver verá!





Literatura que engrandece a realidade



Wilson Martins



Roberto Gomes e Tabajara Ruas aliam estilo,
criatividade e precisão em dois excelentes romances históricos


No romance histórico, a realidade fornece o assunto, a intriga e os personagens, ou seja, o que não é literário, cabendo ao romancista, por paradoxo, torná-los imaginários, acrescentando verossimilhança ao tecido da verdade. Voltamos, com isso, às clássicas distinções aristotélicas, segundo as quais o verdadeiro é o que realmente aconteceu, matéria da História, enquanto o verossímil é o que poderia ter acontecido, matéria da literatura.
Tornar imaginária a realidade não é falsificá-la, mas, ao contrário, fazê-la mais verdadeira como ficção: no romance histórico, a homogeneidade artística obtém-se pela ficcionalização dos personagens e fatos reais mais o concomitante tratamento realista dos fictícios, requisito que chegou ao ponto ótimo nos livros de Roberto Gomes ("Os dias do demônio". Porto Alegre/ São Carlos: Mercado Aberto/ UFSCar, 1995) e Tabajara Ruas “Os varões assinalados". Segunda ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995).
Neles, a simbiose é tão perfeita que .podemos lê-los simultaneamente como História e como literatura, pois ambos conservam os nomes e as datas, a localização e os episódios da vida real, acrescentando-lhes o ritmo e o sentido que esta última, sendo, por natureza, fragmentária e incoerente, só adquire, justamente, em retrospecto, isto é, na reconstrução imaginária. Tabajara Ruas retoma a obsessão dos gaúchos pela Revolução Farroupilha, trauma de complexa substância mental, constituída pelos mitos heróicos e suas frustrações, pela má consciência e orgulho reivindicativo, pela memória épica e incontáveis dramas humanos.
De Alcides Maia e Simões Lopes Neto a Érico Veríssimo e Tabajara Ruas (para mencionar apenas os picos da cordilheira), essa é a matéria da gauchesca, invenção retrospectiva e saudosista de escritores urbanos, conforme já foi observado pelo antigaúcho que se chamava Jorge Luis Borges, signo distintivo do espírito rio-grandense e remorso inseparável de suas nostalgias nacionais - ou vice-versa.
Moisés Vellinho, historiador e ensaísta que faz simetria, no campo das idéias, aos romancistas nos domínios da imaginação, tomou como tema central de sua obra o propósito de contestar, em oposição às verdades aceitas, que o espírito e a realidade social do Rio Grande do Sul respondessem e correspondessem a projetos separatistas. Antigetulista ferrenho, o motivo oculto de sua argumentação consistia em negar que Getúlio Vargas, caudilho de paletó-saco, fosse, por qualquer das suas costelas, homem representativo da sua região, com o que, aliás, contradizia o seu sistema de idéias (tudo isso deve ser enquadrado nas coordenadas da grande e irreparável clivagem que separa em duas as famílias políticas do Rio Grande do Sul, os chimangos e os maragatos).
Aí está a trama invisível dos "Varões assinalados", título tanto mais significativo quanto propõe desde logo a "chave" de leitura: a Revolução Farroupilha e os seus homens e feitos, a sua gesta ao mesmo tempo trágica e heróica, formam a matéria que fascina Tabajara Ruas (também em segunda edição e pela mesma edi­tora, está circulando “Netto perde sua alma", painel lateral do quadro gigantesco, semelhante aos que os artistas clássicos e românticos pinta­ram sobre as grandes batalhas e os grandes generais).
Batalhas e generais afrontaram-se e enfrentaram-se, por definição, na Revolução Farroupilha, não apenas republicanos contra monarquistas, mas também os republicanos entre si ao acaso das inevitáveis rivalidades pessoais, inclusive, ao que se diz, nas disputas amorosas.
Sob esse aspecto, pode-se tomar o duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires como resumo ou miniatura psicológica de todo o processo, significativamente privilegiado por Simões Lopes Neto num dos seus contos paradigmáticos ("Duelo de farrapos") - tratado por Tabajara Ruas numa página destinada a tornar-se clássica no romance brasileiro.
Desse quadro de heroísmo militar passamos, com o romance de Roberto Gomes, para o plano das misérias contemporâneas, no que poderíamos denominar, em terminologia marxista de botequim, as lutas camponesas no sudoeste do Paraná.
Lutas camponesas que, no caso, nada tinham de ideológico, nem mesmo de político, no sentido imediato da palavra, originando-se nas torpes manipulações de grupos econômicos interessados em se apropriar de terras agrícolas já então legalmente adquiridas e ocupadas por autênticos agricultores (muitos, se não todos, originários, por coincidência, do Rio Grande do Sul, num dos movimentos migratórios mais interessantes da história paranaense).
Roberto Gomes escreveu sobre isso um romance histórico modelar, que é, ao mesmo tempo, um documento de História, pois, num texto que é também uma denúncia irrecusável, políticos e organizações responsáveis comparecem, como ficou dito, com os seus próprios nomes, sem que isso interfira na trama e no tom narrativo enquanto ficção. Aqui se situa o tópico central da teoria romanesca, o chamado ponto de vista. Narradores oniscientes, Tabajara Ruas e Roberto Gomes escreveram, respectivamente, na ótica dos farrapos, afinal vencidos, e dos agricultores, afinal vitoriosos. E por esse lado que encaminham e orientam a cumplicidade do leitor, inclusive no desenho dos caracteres e nos pormenores da intriga.
O romance histórico exige esse enfoque maniqueísta e participação emocional: quem os escreve espera que o leitor tome o partido dos três mosqueteiros ou o de Bento Gonçalves, este último não só contra o Barão de Caxias, mas também contra os seus rivais de comando - ou, no caso de Roberto Gomes, o dos agricultores inocentes contra o governo e a companhia que organizou ou deixou organizar para espoliá-los.





Um caso de bovarismo


Wilson Martins


Publicado em 28/06/2008 - A Gazeta do Povo
e em 15/07/2008 no Jornal do Brasil


 

Pequena Bovary de província (como o seu protótipo), Júlia da Costa (1844-1911) foi um caso exemplar de bovarysmo segundo o tipo psicológico identificado por Jules de Gaultier há mais de um século para designar os que tendem a aspirar por uma vida diferente da sua, idealizada e compensatória. A literatura conheceu-os antes dos psiquiatras, criando a família dramática a que ela pertence, ao lado de Emma Bovary (que deu nome à teoria), a Luísa queirosiana e tantas outras, inspirando obras-primas da arte romanesca às que agora podemos acrescentar Roberto Gomes, mestre do romance histórico, com Júlia (Belo Horizonte: Leitura, 2008).
Trata-se da autora de Flores Dispersas (1867), poetisa menor hoje esquecida (tanto quanto o seu livro), mas sobrevivente em raras referências bibliográficas que a apresentam como paranaense que primeiro publicou um livro. Paranaense? Sim, por ter nascido em Paranaguá, mas a verdade é que, vivendo desde a infância na cidade catarinense de São Francisco, ali fez seus estudos, integrando-se, de perto ou de longe, às suas atividades literárias e jornalísticas. Nessas condições, incorporá-la à literatura paranaense é claramente um ato de apropriação indébita. Aludindo a Flaubert e Eça de Queiroz não pretendo estabelecer paralelos gratuitos, mas, ao contrário, acentuar desde logo que o romance de Roberto Gomes pertence ao mesmo plano de qualidade narrativa e perfeição estética.
Aqueles são clássicos da literatura universal porque o tempo os consagrou, mas ainda não o eram em 1857 e 1878 quando apareceram, beneficiando-se aos nossos olhos pela tradição crítica e respectivas idéias feitas desde então acumuladas. Roberto Gomes se inscreve na família do realismo flaubertiano – aquela na qual o romancista deve dar a impressão de jamais haver existido – não à do naturalismo zolaesco repleto de subentendidos doutrinários. Este último parta das explicações fisiológicas, declaradas ou implícitas, e aquele, de singularidades psicológicas. Há muito sexo em Luísa e na senhora Bovary, mas quase nenhum em Júlia, participante constrangida e indiferente aos deveres da vida conjugal, até aparecerem os dois homens aos quais se ligou por uma paixão desvairada. No romance de Roberto Gomes o sexo comparece por metáfora, se assim me posso exprimir, nas relações do marido com a escrava, contrapostas às fantasias românticas de Júlia, com trocas de bilhetinhos nas janelas e encontros furtivos pela cidade.
É o retrocesso irônico da realidade “realista” (proposta e aceita pelo casamento de razão) em face das idealizações do romantismo adolescente: “Só Benjamin fizera com que seu coração desse um salto forte em seu peito, a respiração suspensa, as pernas oscilando. E não fora apenas isto. Desde o primeiro momento ficara encantada com o rosto pálido de Benjamin, seus olhos ao mesmo tempo inquietos e doces, os lábios grossos, o queixo firme, a voz grave com que cantava valsas e modinhas. E as mãos, grandes mãos de violonista, dedos magros e finos, de uma elegância elástica, expressando tensão e graça, movendo-se em sua direção num cumprimento galanteador [...]”.
Qualquer psicanalista amador reconheceria as metáforas da atração física sob esses pensamentos idealizadores e “inocentes”, nomeadamente a nostalgia da dança, mimodrama do ato sexual, pois, na valsa, pela primeira vez, o homem enlaçava a mulher: “Mas nunca haviam dançado, nem mesmo haviam passeado pela praça central de São Francisco, que era onde as moças inauguravam seus namoros oficialmente”. Nesse quadro, o futuro marido surge como intruso e usurpador, assim sendo visto pelos biógrafos convencionais que idealizam Júlia da Costa e as suas aventuras amorosas. Passear pela praça “não era permitido a eles. A situação absurda na qual a colocara o gesto do Comendador [propondo-lhe casamento] a transformara numa mulher proibida a qualquer outro homem. Este era o poder que se abatera sobre ela. Já não poderia encontrar-se com Benjamin em público, não poderia dançar [sic] com ele nos bailes, seus encontros deveriam ser secretos, escondidos dos olhares da cidade. [...] Benjamin surgira em sua vida e logo se tornara proibido”.
O idealizado Benjamin revelou-se, afinal, decepcionantemente realista, abandonando-a sem maiores explicações e casando-se com outra. O segundo sedutor foi seu amante, saltando muros na calada da noite para encontrá-la em seu próprio quarto conjugal. Júlia dá-lhe de presente a preciosa espada histórica do Comendador, gesto cujo significado psicanalítico é mais do que evidente. Fulminada pela fuga do amante, Júlia se tranca no quarto até morrer, refugiando-se na loucura, suicídio simbólico correspondente ao suicídio real de Emma Bovary. O final é uma página flaubertiana quando, depois da morte de Júlia, um amigo vem fechar as portas do palacete. Foi tudo uma fatalidade, poderia ele repetir com Charles Bovary – a fatalidade que costuma inspirar os grandes romances.



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