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As crônicas

As crônicas de Roberto Gomes




Paulo Venturelli



    A cada quinze dias, Roberto Gomes vem publicando suas crônicas no Caderno G, da Gazeta do Povo. Nelas, o autor mostra-se capaz de abordar problemas graves, sejam da área das relações humanas, sejam da criação artística (reflexões sobre o próprio trabalho de escrever) e da política, no sentido amplo. O tom, entretanto, foge da pretensa seriedade, porque o escritor opta por pinceladas rápidas – próprias do gênero que pratica – que não perdem de mira o discurso profundo da perspectiva com que encara e trata seus temas.


    Sua marca é o humor corrosivo e sutil, de cunho machadiano. Roberto Gomes ressalta ainda, com esta moldura, os absurdos de nosso cotidiano, nossas idiossincrasias, nossos desacertos com o que está ao derredor ou cutucando os subterrâneos em que buscamos restos de ar. E, ao fazer isso, investe seus textos de leveza, a isca para nos convidar ao mergulho em seu pensamento. E, mergulhados aí, nos surpreendemos: o que parecia simples tirada de humor, efeito jocoso de frases bem construídas para ironizar, nos coloca no centro fervilhante de seu pensamento astuto, crítico, ágil e atento às passarelas do mundo. Sem fazer carranca, Roberto Gomes aponta o dedo em riste para as mazelas sociais e de cada indivíduo e, em lugar do acento moralista, entrega-nos a sátira, o deboche, o sarcasmo que são, no final de contas, o melhor caminho para revelar o quanto de ridículo acumulamos em nosso cotidiano. Ao escolher esta via, ele está realizando aquilo que Bakhtin tão bem localizou em Rabelais: o humor aproxima o homem das coisas do mundo, tira o halo das falsas seriedades, destrói hierarquias imponentes (e de pés de barro), para deixar escancarado o quanto tudo isso é oco, mero efeito visual, cenário de isopor que não resiste a uma investida mais contundente. A linguagem de Gomes, em decorrência, reinvestindo na crônica, recupera sua melhor tradição: o olho atento ao comezinho ou ao solene em sua real dimensão. E ao encontrar o tamanho efetivo de cada fato, de cada ser humano, de cada gesto, é que o autor consegue aquele humor refinado, para o qual os filosofemas são suportes precisos de desvendamento: fios da meada que cabe ao leitor puxar para perceber até onde cada trançado da crônica vai nos conduzir.


    Por trás da arquitetura simples e comedida dos textos dominicais, há uma sólida bagagem filosófica que não nega a formação do escritor. Tal bagagem é ladeada por aquilo que até há pouco tempo chamávamos de “formação humanística” e que, nesta época pragmática, belicista, contraditória, vem sendo cada vez mais esquecida. Em seu lugar, assume o consumismo como modelo de vida a tiranizar as pessoas ou ridicularias como o “politicamente correto”, outro ready- made produzido na terra dos cowboys, estertorando estes para encontrar uma guerra que justifique a máquina mortífera que os colocou no poder. Tais embrulhos chegam até nós como abscessos. Gomes, com suas agulhadas, abre a crosta, fotografando a composição ideológica destas distorções, verdadeiros derivativos para não nos deixar ver o que realmente importa. Entretanto, ele evita o catequético, a impostação utilitarista, dando um riso de mofa, do que é exemplo a crônica sobre a arte de fazer bonecos. Nela, vêm à tona a ânsia pelo sucesso fácil e imediato, as máscaras em lugar da convicção, o trejeito substituindo o genuíno, o ventríloquo em lugar da pessoa de postura definida. Cada fotrograma desses denuncia sem alarde. O autor não grita, não esbraveja, não sobe no palanque. Vem de mansinho, quase engatinhando, até nosso ouvido e deixa cair ali dentro a gota gelada de fel. Temos de acordar, sacudir a letargia e, juntando as peças do quebra-cabeça verbal e conceitual, montar uma outra paisagem para o que enxergamos pela janela. Paisagem esta que nada tem com o que estamos condicionados a encontrar, nem com o que os meios de comunicação martelam sem parar sobre nossas cabeças. Com um detalhe: Roberto Gomes está usando um meio de comunicação popular (a Gazeta do Povo) para, nas entrelinhas, cutucar esses órgãos. Daí que seu trabalho, dialeticamente, oferece também um sentido metalingüístico para se repensar o jornal e a função do articulista/cronista nestas páginas de domingo.


    Assim, suas crônicas têm um viés de resistência. Comprovam que pensar, ter conteúdo e visão não saíram de moda. Pelo contrário, são os únicos trilhos para não nos tornarmos aqueles bonecos sem vísceras da citada crônica.


   Às vezes, há um toque de desespero que passa pelo filtro de um comportamento um pouco cético (o riso de mofa) e tal recurso evita o sentimentalismo rasteiro, tão comum na mídia que valoriza a emoção, confundida com arroubos lacrimejantes. É só prestar atenção em certas reportagens: notemos como os jornalistas (os perguntadores, que já foram tema de crônica mais antiga deste autor) se esforçam para fazer o focalizado chorar, como se a lágrima fosse o tosão de outro que todo repórter luta para conquistar. Quem sabe, por ser nossa sociedade tão destrambelhada, tão seca e impessoal, quando a tecnologia do aperta-botão mais e mais nos separa uns dos outros, as lágrimas que tentam fazer brotar sejam um modo de regar o chão e deixar nascer a plantinha mirrada da esperança fuleira. Roberto Gomes sacode a cabeça, encolhe os ombros, olha para cima como se nem estivesse ali, solta o seu assobio de aço cortante e nos desperta uma vez mais da empatia burra com esse tipo de construção midiática caça-ibope.


   Atento aos desmandos do que também compreendemos um dia como “valores humanos”, o cronista não levanta bandeiras altissonantes. Ele se porta como um observador da vida e da sociedade, alertando, apontando para outras possibilidades de ser e de existir. Afinal, acredito que esta é a função da arte, se arte tiver alguma função neste nosso mundo-quintal-fazendola-capacho em que as “verdinhas” são o primeiro e o último lance para tudo. Enquanto um bom chargista – lembremos de Paulo Caruso – com três ou quatro traços monta e desmonta a febre de glória, os desmandos da política, a sede de poder, a fabricação de ícones inúteis, a indústria do prêt-à-porter, Gomes, com poucas palavras, no seu estilo sóbrio, às vezes quase telegráfico, realiza verdadeiros tratados de sociologia política ou psicologia social sobre o Brasil. No interior do cronista está o homem dos romances e dos contos (vários premiados), em suma, o homem que pensa, que não nega a crise, trabalha com ela e sobre ela, o artista preocupado com o destino deste planeta vagando meio sem rumo no infinito. Sem rumo? Outra vez olho visionário, outra vez artesão do pensamento que não se acovarda, Roberto Gomes lança a dúvida. Lançando a dúvida, nos inquieta; nos inquietando, fende a superfície que pretendemos una e harmoniosa. Damos uma espiada no que vemos. Não é nada bom o espólio. Desespero? Nada disso. Roberto Gomes atualiza o que Érico Veríssimo escreveu em suas memórias: o papel do artista é iluminar os males sociais, não oferecer soluções para eles. Os “homens da política” estão aí para isso (e, por sinal, ganhando muito bem), uma vez que detêm meios e poder ao seu alcance.


   Por este enquadramento, na manhã de domingo, quando você ler a crônica de Gomes, pode ter certeza: o sofá vai espinhar seus fundilhos. O formigamento vai perturbar a pachorra domingueira. Você vai se coçar todo, incomodado com o pó que o escritor lhe lançou na direção do côncavo sonolento da alma refestelada de inércia. É para isso mesmo que existem os escritores dignos deste nome. Literatura e arte recusam o papel de canção de ninar. Roberto Gomes sabe muito bem disto. Veja, leia, e mantenha a passividade, se for capaz.


   A tradição da crônica brasileira tem muitos nomes de destaque, como Machado de Assis, João do Rio, Cecília Meireles, Rubem Braga, Fernando Sabino. A galeria agora se distende com mais este nome: Roberto Gomes, capaz de com um detalhe insignificante fazer pequena jóia de reflexão, ao mesmo tempo em que diverte.


  Bartolomeu Campos Queirós, um escritor que prezo muito, disse certa vez;”ler não é um exercício fácil. Ler machuca muito, descontrola muito, tira muito a gente do prumo.” É assim que deve ser, no meu entendimento. Leitura não pode ser confundida com consumo anódino. As crônicas de Roberto Gomes cumprem esta tarefa à risca. O descontrole que geram, o prumo que quebram são estocadas nesta sociedade que se diz neoliberal e de neo e liberal não tem nada. Razão por que, nas entrelinhas de seus escritos, há um pigmento de utopia: refazer ao menos parte do mundo, reconsiderá-lo por outro ângulo, mostrar que o que é assim poderia ser de outro modo. O mundo em movimento convulso, em geral tocado por mãos oportunistas, tem nas constatações de Gomes um dique que diz: calma, lá, meu povo, isso não é a verdade intocável. Há outras facetas neste jogo. E, véu a véu, ele descortina o vale que, necessariamente, não precisa ser de lágrimas. Podemos dançar na corda-bamba. Cada crônica deste autor é música nova para que encontremos outro ritmo e a passagem possa ser feita com menos arranhões, mais sentido de humanidade, mais alegria simples de estar aqui, quando estar aqui implica a relação e o respeito com o outro, este bicho diferente e complicado e, também, revivificador do cotidiano.


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